O crime de perseguição (vulgo stalking) chegou recentemente ao ordenamento jurídico, tornando-se, não por culpa do aplicador do direito, mas de uma sociedade crescentemente disfuncional, num dos crimes da moda.
Na esteira do Ac. da Relação de Lisboa de 16.10.2018 in www.dgsi.pt “o stalking designa um curso de condutas intrusivas e persistentes, prolongadas indeterminadamente no tempo, que podem ser compreendidas como atos persecutórios não queridos e perturbadores para a vítima. As condutas persecutórias materializam-se, portanto, em diversas “formas de comunicação, vigilância e contacto, exercidas sobre alguém que é alvo de um interesse e atenção continuados e indesejados. Diz-nos a experiência que o stalking envolve uma campanha de condutas que têm tendência a escalar em frequência e severidade ao longo do tempo” (Neste sentido sempre se dirá que “o stalking é um fenómeno que não é singular, que consiste, frequentemente, numa combinação de condutas criminais e dependendo do contexto, não criminais, que dificultam essa identificação” – Artur Guimarães Ribeiro CF. Op. Nota 39, p. 68)
Contudo, este crime não afastou, a nosso ver, do nosso ordenamento jurídico-penal outras formas de abordagem de fenómenos similares, cujo tratamento e posologia penal nos parecem mais adequadas, como seja o crime de perturbação da vida privada, previsto e punido pelo Artigo 190 do Código Penal.
Vejamos com mais detalhe,
Estabelece o Artigo 154.º A n.º1 do CP que: “Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.”
Nesta senda, tutela o artigo 154.º-A do Código Penal que, os elementos objetivos do tipo são, necessariamente, a ação do agente, que consiste na perseguição da vítima por qualquer meio, direto ou indireto por forma a provocar medo ou inquietação na esfera da vítima, obrigando-a, por vezes, a alterar o seu quotidiano em função deste crime.
Na verdade, o crime de perseguição tem natureza continuada, dinâmica e múltipla, pelo que, não é permitido defini-lo a partir da ocorrência de um comportamento isolado e típico, mas por uma constelação de comportamentos que, prolongados no tempo, tendem a escalar em frequência e intensidade, tornando-se em ações inequivocamente intimidatórias e perigosas.
Assim, não comete o crime de perseguição quem se dirige simplesmente a outrem, mas sim quem em função da sua atuação pode provocar medo ou inquietação.
Neste sentido, entre outros, veja-se o disposto no sumário do Ac. do tribunal da Relação de Évora, no âmbito do processo n.º 17/16.3GBRMZ.E1:
“I – O crime de “perseguição” tem como elementos constitutivos:
– A ação do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio (direto ou indireto);
– A adequação da ação a provocar na vítima medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação;
– A reiteração da ação.
Exige-se ainda o dolo do agente, em qualquer das suas modalidades.
II – A “perseguição” (ou “stalking”) é um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo. Tais comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas (como, por exemplo, oferecer presentes constantemente, telefonar insistentemente), ou mesmo em ações inequivocamente intimidatórias (como, por exemplo, seguir a vítima constantemente – a pé ou em veículo automóvel -, enviar repetidas mensagens de telemóvel com conteúdo persecutório e/ou “ameaçador”, enviar correspondência escrita de idêntico conteúdo, etc.).
III – Pela sua persistência e contexto de ocorrência, este padrão de conduta pode assumir tal frequência e severidade que afete não só o “bem-estar” das vítimas, como, mais do que isso, lhes cause medo ou inquietação ou as prejudique na sua liberdade de determinação.”
No mesmo sentido, “O critério utilizado na aferição do medo, inquietação ou inibição da determinação deve ser o do homem médio, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto. As condutas têm de ser praticadas de forma reiterada, pois sem essa reiteração há o perigo de se punir condutas quotidianas, como o envio de presentes à vítima. Para além disso, o agente tem de atuar com dolo, para poder ser responsabilizado a título de perseguição.” Marisa Nunes Ferreira David, A neocriminalização do Stalking, Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2017, p. 43.
Faz-se notar que a opção pelo crime de perturbação foi durante anos padrão na jurisprudência antes da autonomização do crime de perseguição, e pode e deve ser aplicado com grano salis em situações deste tipo com a vantagem de evitar a estigmatização da vítima e do agressor, lançando mão de um meio penal menos gravoso.
E nem se diga que o crime de perturbação é exclusivamente praticado através de chamadas telefónicas, uma vez que as aplicações em causa nos autos se situam hoje no telemóvel de qualquer jovem, como o arguido e a vítima.
E muitas destas aplicações com o Instagram e o Whatsapp permitem a realização de chamadas telefónicas e de vídeo.
Nesta senda, atente-se ao disposto no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra processo n.º 718/11.2PBFIG.C1:
“1.- Com introdução do n.º 2 do art.190.º do Código Penal, através da Reforma de 1995 – « Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação.» – e, posteriormente, com acrescentamento ao mesmo da expressão « ou para o seu telemóvel» através da Reforma de 2007, o legislador quis abranger todas as formas possíveis de comunicação tecnicamente permitidas através de telefone, sejam fixos ou móveis, incluindo a palavra escrita para os telefones móveis, que com a sua receção emitem um som de aviso.
2.- Uma vez que “telefonar” significa comunicar pelo telefone e que resulta dos factos dados como provados que o arguido, a partir do seu telemóvel enviou para o telemóvel do ofendido, as mensagens cujo teor consta da mesma factualidade, e que ao assim atuar quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e o sossego do ofendido, conhecendo e querendo a realização daqueles factos antijurídicos e agindo com consciência da ilicitude, preencheu com a sua conduta todos os elementos constitutivos dos crimes de perturbação da vida .”
Assim sendo, consideramos que ambos os crimes concorrem no sistema jurídica atual e que a aplicação de cada um dos crime dependerá sempre da intensidade dolosa da conduta (mais intensa na perseguição e mais suave na perturbação) e dos contexto da relação entre a vitima e agressor.